Pequeno Dicionario da Cozinha Baiana
Verbete-B Badofe
Já não há sacadas nem sobrados, e a atmosfera que fez da cidade da Bahia, um dos lugares mais aprazíveis perderam-se no tempo.
O que se vê hoje são hordas de pessoas, disputando um lugar nas praças de alimentação dos Shoppings Centers para consumir individualmente seu fast-food.
Mas nem sempre foi assim, a comida na Bahia era um evento coletivo e festivo, as feiras e mercados, (apesar de desordenado) tinham importância fundamental na sociabilidade.
A presença das "Tias" nas ruas, era a garantia de prover um bom e farto Mocotó, mulheres negras que mercavam "miúdos de boi" para garantir o sustento familiar, eram comuns.
Há muito pouca descrição do Badofe, segui a descrição da historiadora e folclorista Claudia Lima, retirado do livro Tachos e Panelas, historiografia da Alimentação Brasileira (Recife-1999)
"Com a carne da cabeça de boi aferventada, depois de ter ficado em vinha-d’alhos, faz-se um recheado (refogado) em que a carne pisada doura em azeite de dendê, camarão seco, cebola, gengibre, bejerecum e lelecum (as duas últimas são favas de origem africana).
Depois junta-se “língua-de-vaca” escaldada e escorrida.
Em meio cozimento põe-se quiabos cortados como para caruru e deixa-se engrossar.
Come-se com arroz de haussá ou Angu de farinha de guerra ou de milho. "
Segundo Câmara Cascudo, "As velhas cozinheiras são de opinião que este Badofe talvez tenha dado origem ao Angu da Baiana, numa variação muito difundida no sul do país e completamente."
Conforme Cascudo (1968), o Badofe guarda semelhanças com a chanfana portuguesa.
A Chanfana é tradicionalmente cozido com vinho tinto cultivado na freguesia de Lamas, é assada em fornos de barro e em caçoilas fabricadas pelos oleiros do Carapinhal.
A história da chanfana encontra-se ligada ao contexto social da população do Concelho e ao Mosteiro de Semide.
A relação por demais evidente entre a confecção da carne de cabra velha – chanfana, sopa de casamento e negalhos, o barro e a olaria, nomeadamente no fabrico das caçoilas (Caçarolas) e os típicos fornos, também eles de barro, aquecidos a lenha utilizados tanto na confecção gastronômica como na cozedura do barro, e a existência das vinhas de Lamas produtoras de excelente vinho tinto, demonstram a histórica influência direta da conjuntura econômica e social dos tempos e os recursos naturais do espaço físico de Miranda do Corvo.
Sobre chanfana, transcrevo o que se lê na nota etimológica do Dicionário Houaiss (ver também Nascentes, op. cit.): «[do] esp. chanfaina (1605) "guisado de bofes preparado com cebola e outros condimentos", parece ser alt[eração] de sanfoina, com troca de suf[ixo]; o étimo de chanfana foi proposto por João Ribeiro: lat[im] symphonĭa, ae, "concerto, acompanhamento musical", empr[és]t[imo] ao gr[ego] sumphōnía, as, "concerto de várias vozes, de diversos instrumentos" do ponto de vista fonético nem do ponto de vista semântico, lembrando que não é raro se empregarem termos musicais para designar guisados, prato preparado com vários ingredientes.»
Comida e Musicalidade
E quando o assunto é musicalidade, vale aqui lembrar de Tia Teresa(Tetéia, suas amigas baianas do Rio só a chamavam assim) , nascida na cidade de Maragogipe, recôncavo baiano, e conterrânea Hilária Batista de Almeida, que seria conhecida pela posteridade como Tia Ciata, uma das grandes referencias do samba no Rio de Janeiro, que diferentemente desta, que vendia doces e cocadas.
Tia Tereza, dominava os dotes da cozinha guizada, talvez iniciada no Candomblé, servia angu à baiana, picadinho com batata, arroz, carne assada, fígado de cebolada, lingüiça frita, peixe frito, farofa de ovo e mingau.
A casa de tia Tereza já era conhecida por outros motivos: pelo abrigo que oferecia a órfãos, viúvas e menores abandonados (como observa Vagalume, “sem que a polícia lhe indenizasse as despesas de estadia de dias, semanas e às vezes, meses”); pelo busto de D. Pedro I na sala de visitas; e pelas afamadas festas que promovia.
Uma delas, em honra a São Cosme e São Damião, teve tia Gracinda como rainha.
O filho de tia Gracinda, Didi, era assíduo nas festas em casa de tia Tereza, a quem homenageou com este samba:
Esta gente enfezada/ Que nas pernas tem destreza/ Vem cair na batucada/ Na casa da tia Tereza./ Baiana do outro mundo/ Eu sinto a perna bamba/ O meu prazer é profundo/ Aqui na roda do samba.
Segundo o historiador Alberto Heráclito, Desafricanizar as Ruas:Elites Letradas, Mulheres Pobres e Cultura Popular em Salvador(1 890-1 937)
"Na República, mesmo faltando documentação quantitativa que nos informe sobre números mais exatos, a documentação qualitativa nos leva a supor que as mulheres ainda continuavam como agenciadoras em larga escala do pequeno comércio de alimentos na cidade, uma vez que foram elas o alvo de uma atenção especial dos legisladores municipais.
Condicionando a liberação das matrículas para a mercancia à autorização prévia dos maridos, quando casadas, proibindo o trabalho na rua para os seus filhos menores de 14 anos (companheiros ideais das mães nas atividades de rua), reprimindo a ocupação de calçadas, controlando os horários de trabalho e condenando a venda de comida em bandejas, tabuleiros,gamelas, os poderes públicos pareciam querer obstruir a tradicional inserção das mulheres pobres na vida econômica da cidade.
As fateiras, ou como descreve Hildegardes Viana (1973:144) eram mulheres que “sustentavam infalivelmente uma família inteira, filhos, netos e, algumas vezes, um companheiro inútil por invalidez ou falta de caráter”.
Em seu primeiro contato com a população negra de Salvador, a etnóloga Ruth Landes, descreve as mulheres que trabalhavam numa Feira na Cidade Baixa como “pretas de saias e torsos coloridos e blusas brancas (...). Eram, em geral, mulheres velhas, na aparência robusta, confiantes em si mesmas, profundamente interessadas no trabalho do momento. Geriam açougues, quitandas, balcões de doces e frutas e as barracas onde vendiam especiarias, sabão contas e outras especialidades vindas da costa ocidental da África”.
Landes (2006: 53-55) em seu primeiro contato com a gente da terra levada pelo Dr. Oliveira a um mercado na Cidade Baixa, é apresentada a uma negra que trabalhava nesse mercado a qual o médico chama de Titia e Tia Julia . Tal denominação remonta ao período escravista, e o da Costa remete a origem Africana dessas mulheres.
A expressão Cachorro de Fateira, faz referencia a pessoas inquietas.
Hildegardes Vianna (1973: 128-131) ao descrever o cotidiano de trabalho dessas vendedoras de comida chamadas por “tias da Costa”.
A memoria é curta e o tempo passas depressa, e para não esquecer, faço aqui minha pequena homenagem, á contribuição do historiador Ubiratan Castro, mais conhecido como Bira, morto em 2003.
Sua fama de contador de historias, piadas e incidentes do cotidiano, aos quais acrescenta um tempero especial de graça, irreverência, inteligência e imaginação.
Nos legou este belo trabalho intitulado "Histórias de negro"
No Mercado do Ouro, o dia começa bem cedo.
Um aboio cortante ecoa na escuridão.
Ê mingau! De ta-pi-ó-ca! A humidade e o lusco-fusco da madrugada dão dramaticidade ao pregão de Tia Constança, uma negra reforçada, de cara bolachuda e de coração também imenso.
Nunca deixou um parente africano sem um caneco de mingau.
Já não há sacadas nem sobrados, e a atmosfera que fez da cidade da Bahia, um dos lugares mais aprazíveis perderam-se no tempo.
O que se vê hoje são hordas de pessoas, disputando um lugar nas praças de alimentação dos Shoppings Centers para consumir individualmente seu fast-food.
Foto: A BAIANA E O BALEIRO Marcelo Bruzzi |
Mas nem sempre foi assim, a comida na Bahia era um evento coletivo e festivo, as feiras e mercados, (apesar de desordenado) tinham importância fundamental na sociabilidade.
A presença das "Tias" nas ruas, era a garantia de prover um bom e farto Mocotó, mulheres negras que mercavam "miúdos de boi" para garantir o sustento familiar, eram comuns.
Há muito pouca descrição do Badofe, segui a descrição da historiadora e folclorista Claudia Lima, retirado do livro Tachos e Panelas, historiografia da Alimentação Brasileira (Recife-1999)
"Com a carne da cabeça de boi aferventada, depois de ter ficado em vinha-d’alhos, faz-se um recheado (refogado) em que a carne pisada doura em azeite de dendê, camarão seco, cebola, gengibre, bejerecum e lelecum (as duas últimas são favas de origem africana).
Depois junta-se “língua-de-vaca” escaldada e escorrida.
Em meio cozimento põe-se quiabos cortados como para caruru e deixa-se engrossar.
Come-se com arroz de haussá ou Angu de farinha de guerra ou de milho. "
Segundo Câmara Cascudo, "As velhas cozinheiras são de opinião que este Badofe talvez tenha dado origem ao Angu da Baiana, numa variação muito difundida no sul do país e completamente."
Conforme Cascudo (1968), o Badofe guarda semelhanças com a chanfana portuguesa.
A Chanfana é tradicionalmente cozido com vinho tinto cultivado na freguesia de Lamas, é assada em fornos de barro e em caçoilas fabricadas pelos oleiros do Carapinhal.
A história da chanfana encontra-se ligada ao contexto social da população do Concelho e ao Mosteiro de Semide.
A relação por demais evidente entre a confecção da carne de cabra velha – chanfana, sopa de casamento e negalhos, o barro e a olaria, nomeadamente no fabrico das caçoilas (Caçarolas) e os típicos fornos, também eles de barro, aquecidos a lenha utilizados tanto na confecção gastronômica como na cozedura do barro, e a existência das vinhas de Lamas produtoras de excelente vinho tinto, demonstram a histórica influência direta da conjuntura econômica e social dos tempos e os recursos naturais do espaço físico de Miranda do Corvo.
Sobre chanfana, transcrevo o que se lê na nota etimológica do Dicionário Houaiss (ver também Nascentes, op. cit.): «[do] esp. chanfaina (1605) "guisado de bofes preparado com cebola e outros condimentos", parece ser alt[eração] de sanfoina, com troca de suf[ixo]; o étimo de chanfana foi proposto por João Ribeiro: lat[im] symphonĭa, ae, "concerto, acompanhamento musical", empr[és]t[imo] ao gr[ego] sumphōnía, as, "concerto de várias vozes, de diversos instrumentos" do ponto de vista fonético nem do ponto de vista semântico, lembrando que não é raro se empregarem termos musicais para designar guisados, prato preparado com vários ingredientes.»
Comida e Musicalidade
E quando o assunto é musicalidade, vale aqui lembrar de Tia Teresa(Tetéia, suas amigas baianas do Rio só a chamavam assim) , nascida na cidade de Maragogipe, recôncavo baiano, e conterrânea Hilária Batista de Almeida, que seria conhecida pela posteridade como Tia Ciata, uma das grandes referencias do samba no Rio de Janeiro, que diferentemente desta, que vendia doces e cocadas.
Tia Tereza, dominava os dotes da cozinha guizada, talvez iniciada no Candomblé, servia angu à baiana, picadinho com batata, arroz, carne assada, fígado de cebolada, lingüiça frita, peixe frito, farofa de ovo e mingau.
A casa de tia Tereza já era conhecida por outros motivos: pelo abrigo que oferecia a órfãos, viúvas e menores abandonados (como observa Vagalume, “sem que a polícia lhe indenizasse as despesas de estadia de dias, semanas e às vezes, meses”); pelo busto de D. Pedro I na sala de visitas; e pelas afamadas festas que promovia.
Uma delas, em honra a São Cosme e São Damião, teve tia Gracinda como rainha.
O filho de tia Gracinda, Didi, era assíduo nas festas em casa de tia Tereza, a quem homenageou com este samba:
Esta gente enfezada/ Que nas pernas tem destreza/ Vem cair na batucada/ Na casa da tia Tereza./ Baiana do outro mundo/ Eu sinto a perna bamba/ O meu prazer é profundo/ Aqui na roda do samba.
Segundo o historiador Alberto Heráclito, Desafricanizar as Ruas:Elites Letradas, Mulheres Pobres e Cultura Popular em Salvador(1 890-1 937)
"Na República, mesmo faltando documentação quantitativa que nos informe sobre números mais exatos, a documentação qualitativa nos leva a supor que as mulheres ainda continuavam como agenciadoras em larga escala do pequeno comércio de alimentos na cidade, uma vez que foram elas o alvo de uma atenção especial dos legisladores municipais.
Condicionando a liberação das matrículas para a mercancia à autorização prévia dos maridos, quando casadas, proibindo o trabalho na rua para os seus filhos menores de 14 anos (companheiros ideais das mães nas atividades de rua), reprimindo a ocupação de calçadas, controlando os horários de trabalho e condenando a venda de comida em bandejas, tabuleiros,gamelas, os poderes públicos pareciam querer obstruir a tradicional inserção das mulheres pobres na vida econômica da cidade.
As fateiras, ou como descreve Hildegardes Viana (1973:144) eram mulheres que “sustentavam infalivelmente uma família inteira, filhos, netos e, algumas vezes, um companheiro inútil por invalidez ou falta de caráter”.
Em seu primeiro contato com a população negra de Salvador, a etnóloga Ruth Landes, descreve as mulheres que trabalhavam numa Feira na Cidade Baixa como “pretas de saias e torsos coloridos e blusas brancas (...). Eram, em geral, mulheres velhas, na aparência robusta, confiantes em si mesmas, profundamente interessadas no trabalho do momento. Geriam açougues, quitandas, balcões de doces e frutas e as barracas onde vendiam especiarias, sabão contas e outras especialidades vindas da costa ocidental da África”.
Landes (2006: 53-55) em seu primeiro contato com a gente da terra levada pelo Dr. Oliveira a um mercado na Cidade Baixa, é apresentada a uma negra que trabalhava nesse mercado a qual o médico chama de Titia e Tia Julia . Tal denominação remonta ao período escravista, e o da Costa remete a origem Africana dessas mulheres.
A expressão Cachorro de Fateira, faz referencia a pessoas inquietas.
Hildegardes Vianna (1973: 128-131) ao descrever o cotidiano de trabalho dessas vendedoras de comida chamadas por “tias da Costa”.
A memoria é curta e o tempo passas depressa, e para não esquecer, faço aqui minha pequena homenagem, á contribuição do historiador Ubiratan Castro, mais conhecido como Bira, morto em 2003.
Sua fama de contador de historias, piadas e incidentes do cotidiano, aos quais acrescenta um tempero especial de graça, irreverência, inteligência e imaginação.
Nos legou este belo trabalho intitulado "Histórias de negro"
No Mercado do Ouro, o dia começa bem cedo.
Um aboio cortante ecoa na escuridão.
Ê mingau! De ta-pi-ó-ca! A humidade e o lusco-fusco da madrugada dão dramaticidade ao pregão de Tia Constança, uma negra reforçada, de cara bolachuda e de coração também imenso.
Nunca deixou um parente africano sem um caneco de mingau.
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